áfrica_hoje
O áfrica_hoje é um programa jornalístico de rádio com matérias diárias sobre o continente...

atlântico negro

Atlântico Negro – Na rota dos Orixás, é um documentário lindo, que mostra a diáspora negra que espalhou o povo africano pelo continente americano e pelo Brasil. Foi produzido pelo Pólo de Cinema e Vídeo do Distrito Federal e dirigido por Renato Barbieri, com quem tive uma conversa deliciosa e da qual separei uns trechos:

tás a ver?: Como surgiu a sua ligação com a África?

Renato Barbieri: Eu me lembro que, aos dez anos, ficava ouvindo o rádio do meu pai e sintonizando umas rádios do norte da África, do Magrebe. Eu procurava as músicas e ficava fascinado. Com treze anos fui com a minha família para o Marrocos e Senegal. E lá ouvia as rádios que eu já conhecia pelo rádio do hotel. Também nessa época percebi como o meu pai, italiano de raízes mouras, se parecia fisicamente com os marroquinos e aquilo me intrigou. No Senegal, fiquei encantado pelos cantos das mesquitas, o Islã na África negra, coisa que nunca tinha imaginado. Fiquei impressionado com a estética toda dessa religião nesse contexto. Estes foram os primeiros contatos e que ficaram em mim de certa forma. Muitos anos depois, em 1985, quando resolvi virar documentarista, depois de algum sucesso com o meu primeiro documentário “Do Outro Lado da Sua Casa”, senti novamente o impulso de fazer algo com a África.

tás a ver?: Como surgiu a idéia para o documentário? O que te inspirou?

RB: Em 1987, um ano antes do centenário da abolição, a Fundação Ford abriu um concurso para documentários que falassem sobre o tema. Resolvi escrever um projeto e comecei a estudar e pesquisar e me deparei com um dado muito impactante, o fato de que eu não conseguia achar um mapa da diáspora negra. Não havia em lugar nenhum e muito menos nas cartilhas escolares. Eu só consegui encontrar o mapa da diáspora para todas as Américas, dentro de um livro estrangeiro na biblioteca da USP. Não conseguia encontrar um mapa da diáspora apenas para o Brasil. Isso revelava que o grande público não tinha forma de acesso à esta informação tão essencial sobre a origem dos negros no nosso país. Bom, acabei não ganhando o edital, mas nessa altura eu já estava completamente apaixonado pelo tema e continuei me envolvendo mais e mais com a minha pesquisa, participava de debates, reuniões, me engajei com o movimento negro, tudo o que podia. Em 92 conheci o Victor Leonardi, que viria a ser o meu parceiro de trabalho tanto no Atlântico Negro quanto em diversos outros projetos. Juntos escrevemos este documentário e o formatamos para a Nigéria e o Benim. Em 03 de Janeiro de 1998 desembarcamos no Benim para filmar. A Nigéria não rolou porque naquela época eles viviam uma ditadura que desconfiava de tudo e não conseguimos visto. Nesse mesmo período entrei em contato com Alberto Costa e Silva e tive o prazer de contar com o apoio deste que é o homem mais apaixonado pela África que eu já conheci. Um grande historiador que acabou não só sendo entrevistado por nós, como virou uma espécie de consultor de todo o projeto. Foi ele, inclusive, que me ditou, por telefone, o mapa da diáspora para o Brasil e que está lá no filme! Ele ia falando “pega uma flecha….aponta ela de tal país para tal região do Brasil” e assim fomos construindo a imagem.

tás a ver?: Quais são as particularidades de se filmar na África?

RB: Bom, como em cada lugar, a África também apresenta desafios e oportunidades no processo de desenvolvimento de um filme. Eu descobri, por exemplo, que é fundamental ter o apoio de um órgão oficial porque senão as portas não se abrem. Tudo tem que ser feito com muita diplomacia. Também descobri que é fundamental contratar alguém do lugar para integrar a sua equipe. Isso porque o conceito de família no Benim é muito forte e este contato com alguém local ajuda a abrir portas, ter acesso a dados e pessoas. Você vira uma pessoa da família quando consegue estreitar laços. Além disso, você precisa de alguém que fale as línguas locais. Só no Benim, país do tamanho de Portugal, são 42 línguas. E aqui eu quero abrir um parênteses muito importante, porque as pessoas chamam essas línguas de dialetos e eu quero deixar bem claro que isso é uma falta de informação horrorosa, um estigma. Eu considero uma ofensa chamar essas línguas de dialetos. Os africanos são poliglotas por natureza, falam muitas línguas. Com alguém local que fale essas línguas, o trânsito fica muito mais fácil. Outra coisa que percebi foi que ser brasileiro ajuda muito. Nós temos um carisma e somos muito bem recebidos na maior parte do continente africano, obviamente desde que você seja cuidadoso e respeitoso. Uns franceses uma vez ficaram impressionados que nós conseguimos filmar tudo em 3 semanas, o que de fato parece impossível. Mas isso rolou porque todos foram muito abertos, ajudaram muito, mesmo a maioria dos beninenses não sabendo nada de fato sobre o Brasil além do futebol.

tás a ver?: Você fala no filme sobre as imagens que o Brasil recebe da África, sempre estigmatizadas em forma de tragédia e pobreza. Também fala que deveríamos estreitar os laços para que possamos conhecer melhor a realidade deste continente. O que a África tem para nos mostrar e como acessar?

RB: As diversas mídias globais tendem a reduzir e simplificar as coisas, pelo seu imediatismo, acabam dando visões sobre outros países muito reduzidas, e muito equivocadas. Mesmo a própria imagem do Brasil aparece muitas vezes de forma estigmatizada ou negativa, e as particularidades e realidades locais acabam que não passam, não chegam. Eu acho que é só através da vivência ou mesmo da convivência que se conhece um lugar, e não pelos meios atuais de comunicação de massa. Com a África acontece assim mesmo, só temos acesso a tragédias e mazelas, uma pena. Eu acho que uma forma de aproximar as pessoas do que é mais real e afastá-las dos estigmas é mesmo através da produção cultural, como filmes e literatura. Em muitos aspectos, as culturas africanas são muito mais “civilizadas” do que a nossa ocidental, como na forma de se tratar os mais velhos e as crianças, por exemplo. Mesmo o próprio IDH dá uma visão equivocada da África porque é medido através de padrões ocidentais. Eu estive em Moçambique quando este era o penúltimo país no IDH e eu não via isso nas minhas andanças por lá. Eu estive embrenhado na sociedade moçambicana, entrava na casa das pessoas, participava do cotidiano, e te digo, eu não via toda essa miséria, essa visão apontada pelo IDH. Por exemplo, eu não me lembro de ver menor abandonado, menino de rua. Aliás, muito pelo contrário, via meninos cuidados, precariamente muitas vezes, mas não na rua. O que falta para as pessoas é contextualizar, conhecer, olhar mesmo. Principalmente querer olhar.

Para aproximar as culturas, eu acho que tem que haver um intercâmbio de fato muito maior entre Brasil e África. Temos que ir lá, visitar e também trazê-los para cá. Temos que ter projetos para levar gente pra lá, médicos, professores, grupos culturais. Isso ajudaria também a própria imagem do Brasil na África. Muitos nem sabem que fomos colonizados por Portugal, pensam que fomos colonizados pela África. Veja lá a imagem do Brasil lá fora: futebol, música, carnaval, tudo bem ligado a África. O José Miguel Wisnisk escreveu sobre isso no livro Veneno Remédio – o futebol e o Brasil, que acaba de ser lançado. Temos que fazer o mesmo que fizemos com o futebol, nas áreas da ciência, das artes.

tás a ver?: O ensino sobre África nas escolas brasileiras é muito limitado, apesar de hoje termos uma lei que obriga as escolas a ensinarem história da África. Qual a sua opinião e o que falta na nossa educação para que essa realidade possa mudar?

RB: Eu tenho que falar sobre a minha área, o cinema, os meus filmes, os filmes de outros. Eu penso que tudo isso deveria estar dentro das escolas. Materiais didáticos não são apenas os livros didáticos. Todos estes outros recursos áudio visuais não estão dentro das escolas. Parece óbvio, mas não é. Eu vendo os vídeos para muitos professores, mas estes os compram com o próprio dinheiro e não via escolas, o que é bizarro. Eu acho que as escolas deveriam ter bibliotecas com recursos áudio visuais e sessões inteiras sobre as relações África-Brasil, mas isso não rola. Eu já fiz várias reuniões no MEC nesse sentido, mas a burocracia parece que sempre esta lá para não deixar as coisas acontecerem. Outra coisa, tem que pegar os africanistas e levar para as escolas e universidades para falarem, darem palestras, formação para professores. Os poetas, a Ana Maria Gonçalves, os escritores, os intelectuais. Não podemos continuar nessa forma medíocre de ensino. Temos que ser ousados, inovadores, sair desta mesmice, criar conhecimento e inteligência.

tás a ver?: Qual o impacto que o seu documentário teve? Quais os seus próximos projetos?

RB: O filme participou de dezenas de festivais, mostras, passou em TVs, participou de caravanas de exibição. Tudo isso dentro e fora do continente africano. Me surpreendi muito com a reação nos EUA. Tiveram propostas de 3 distribuidores e fechamos com uma e ainda hoje recebo muitos comentários positivos dos americanos, das universidades. Eu acho que isso se deve à forma como nós olhamos a África e como isso ficou claro na linguagem do filme. Esse olhar especial, acolhedor, mais fraternal, mais redondo. Os europeus têm um olhar mais técnico, mais frio. E esse nosso olhar muda tudo, cria proximidade, gera curiosidade por parte de quem assiste o filme. Os americanos foram, não sei bem a razão, tocados por esse nosso jeito brasileiro de retratar a África. Claro que também somos hipocritamente burros e escravagistas ainda, mas também temos um olhar outro sobre a coisa, um olhar que se miscigenou, que tem orgulho, que é, sim, especial. O filme passa isso. Quanto ao futuro, tenho várias coisas em desenvolvimento, voltei ao Benim, ando focado em 3 áreas principalmente: africanidade, biografias e cidades. Mas ainda não posso falar mais…aguardem!

ATLÂNTICO NEGRO - NA ROTA DOS ORIXÁS
País: Brasil
Ano: 1998
Duração : 1h15min
Diretor : Renato Barbieri
Filmado em : Benim, Maranhão e Bahia (Brasil)
Línguas : português, françês, fon e iorubá
Para comprar o DVD: Videografia (tel.: 61-32021584)

Um comentário para atlântico negro

  1. marcos perallta disse:

    Oi.

    Fico feliz pela suas indicações e ja assisti esse filme dentre outros desse director Renato Barbieri, o Atlantico Negro e uma perola.
    beijo
    perallta

Escreva seu comentário:

O seu endereço de email não será publicado Campos obrigatórios são marcados *

*




Coletivo Tás a ver 2010   CC