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Um projeto de intercâmbio literário entre os novos escritores dos países de língua portuguesa...

trechos do candongueiro

Candongueiro - Viver e Viajar pela África, é o livro que o jornalista João Fellet, membro do tás a ver?, acabou de lançar no Brasil pela editora Record. Ele conta histórias sobre o período em que viveu em Angola e sobre a viagem que fez, por terra, de Joanesburgo ao Cairo.

Compartilhamos, aqui, alguns trechos do livro.

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Às vezes, o trem se afastava do Nilo e mergulhava no Saara. As aldeias então sumiam: só se viam areia, morros e rochas. A monotonia da paisagem era quebrada apenas pelas ruínas de vilas abandonadas ou pelas ossadas de animais, imagens sombrias. Nos momentos mais quentes do dia, quando todos ficavam mudos, o vento do deserto tornava-se tão ardente que tínhamos de fechar as janelas da cabine.

À noite, cedi o banco para um senhor e estiquei meu saco de dormir no corredor, onde vários passageiros disputavam espaço. Pela manhã, despertamos cobertos de areia.

Só chegamos a Wadi Halfa, extremo norte do Sudão, às 2 horas da madrugada seguinte, após 43 horas de viagem. A noite estava linda, estrelada, e no único alojamento da cidade os hóspedes tiravam as camas dos quartos para dormir ao relento. Também arrastei a minha cama para fora e me deitei, mas, exausto, não consegui esperar que a primeira estrela cadente cruzasse o céu.

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O candongueiro partiu de Pemba lotado. Sem assento, a última moça a embarcar tentava se acocorar entre o banco do motorista e a primeira fila de passageiros, onde eu estava. Mas não havia espaço, e então sugeri, por gestos, que ela se sentasse sobre a minha mochila, que eu acomodara entre os joelhos.

Notei que a moça – uma camponesa bonita, com os cabelos encobertos por um pano cor-de-rosa – se envergonhou com a proposta, mas acabou por aceitá-la. Pus a mochila um pouco à frente, e ela se sentou de lado para mim.

Depois de algum tempo, percebi que ela relaxara na posição: com o balanço do veículo, passou a deixar que seus braços se resvalassem em mim, o que ela evitara no início. Até que, sem qualquer cerimônia, os repousou sobre uma das minhas pernas e, curvando o tronco, se aninhou no espaço que nos separava.

Também me reclinei em sua direção, delizando a mão pelo banco e deixando-a imóvel sobre o seu ombro. Quando vi, estávamos abraçados.

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Quando fazia meia hora desde que havíamos entrado no parque, encontramos os primeiros animais: um bando de bois. E então notei uma movimentação intensa ao longe: ao nos ver, os homens que conduziam o rebanho fugiam como animais ariscos.

Roba me contou que aqueles homens também eram da sua tribo, karayu. Como não tinham mais pastagens onde levar os bois, recorriam à reserva natural. Lá, no entanto, eram proibidos de entrar e podiam ser presos. Por isso, corriam desesperados ao avistar nosso jipe, largando o rebanho para trás.

Nas três horas em que permanecemos no parque, a cena da fuga se repetiria outras cinco vezes. Quanto a animais selvagens, encontramos apenas um antílope cinza, que nos deu pouca bola e continuou a afiar seu chifre numa rocha. Ironicamente, naquele safári, os animais mais assustados eram da espécie humana.

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À noite, saí outra vez à rua. A maré subira, e as ondas explodiam com violência nos muros. Pisando o chão de pedras, sentia a cidade balançar como um barco em alto-mar. As pessoas haviam se recolhido em suas casas, e a Ilha de Moçambique mergulhara na escuridão.

Jantei e voltei caminhando pelas ruelas, iluminando o chão com meu celular. A ilha fora invadida por gigantescos morcegos, que gritavam enlouquecidos e voavam rente à minha cabeça. Vi alguns cujas asas deviam ter, sem exagero, mais de um metro de comprimento. Como sabia que enxergavam muito mal, tive certeza de que cedo ou tarde algum me atingiria em cheio.

De volta à pousada, ileso e exausto, pensei que muito antes dos emakua, dos árabes e dos portugueses, talvez eles tivessem sido os donos do pedaço.


E se você quer saber o que é Candongueiro, esse clipe do músico angolano Yuri da Cunha explica bem!

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Coletivo tás a ver? 2011   CC