Hoje é um dia um pouco menos feliz do que os outros: o Ruy Duarte se foi. Ele era um cara muito acima da média, antropólogo, escritor, poeta, cineasta, professor… português de nascimento, mas angolano de coração, sua escrita era difícil e hermética, mas genial. Dele só li um livro ficcional, “Os papéis do inglês” (2000). Talvez nem seja sua melhor obra, mas foi a única que encontrei nas minhas andanças com o Ondjaki pelas livrarias de Luanda.
Reproduzo aqui, para me despedir do Ruy, um trecho de que gosto muito.
“Ao acordar de manhã procuro averiguar daquela sensação, algumas vezes experimentada mas quase sempre só recordação longínqua já, de encontrar satisfação por estar vivo e haver um dia à frente para viver. A memória que tenho disso, ou a imagem que ela projecta, remete-me a Londres: disponibilidade, ausência de culpa, um envolvimento exterior simultaneamente propício e distante que me poupava a confrontos maiores, o tédio, ainda assim, de alguma forma alheio, a certeza de que a intensidade e a densidade dos estímulos e dos recursos garantiriam, de alguma forma, contornos suportáveis à presença no mundo. Aqui, talvez, depois de tantos exílios interiores e de tanta auto-flagelação, estarei mais perto de uma experiência equivalente. O acordar é fácil e acompanha a emergência da luz, os pássaros anunciam o dia com folgada antecedência, nada oprime a perspectiva da movimentação, as hipóteses de trabalho são boas, há um jipe lá fora, tenho todas as razões para acreditar que nenhuma hostilidade me cerca, pelo menos num raio de 130 kms. Quando olhar para fora deparei muito provavelmente com silhuetas distantes de mulheres que se deslocam alheias, estou no meio de um espaço que me tem servido de referência pela vida afora, em plena vigência de uma hipótese duramente conquistada à força de determinação e vontade. Por isso me coloco mansa e cautelosamente perante mim mesmo e o que me cerca, não tanto, em consciência, para aproveitar, quanto para me entregar e não estragar, impedir, viciar ou destruir”.
Realmente é uma grande perda. Tive a oportunidade de ver uma exposição linda que ele fez no Instituto Camões, fiquei fão logo de cara!